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Uma vez eu escrevi uma matéria para a Veja São Paulo sobre o musical Wicked, um grande sucesso de bilheteria que tinha arrebatado um fã clube particularmente fervoroso na época. Entrevistei gente que já tinha visto a peça mais de 30 vezes, que faltava em compromissos básicos com escola-trabalho-família e se endividava para poder vir de novo e de novo a SP para assisti-la (gente de 17 e de 40, vale dizer).
Não tenho muito apreço por musicais e julguei um certo delírio entre os integrantes da Wicked Family (isso mesmo), até que me toquei do que aquilo se tratava, inclusive porque alguns deles me disseram literalmente: eles gostavam de gostar do musical porque passaram a compor um grupo que fazia isso junto. Eles interagiam em perfis de redes sociais e grupos de zap, brincavam de se fantasiar para ir ao teatro, iam comer pizza e tomar cerveja depois dos espetáculos, se emprestavam dinheiro se alguém não tinha para o ingresso, travavam amizades e encontros amorosos interestaduais.
Eu poderia citar crossfiteiros, mormons, bolsominions e tantos outros tipos de grupos desse e de outros tempos menos ou mais extremistas que se unem ao redor dos mais diversos temas com consequências com menor ou maior potencial trágico mas esse singelo exemplo do entretenimento me marcou, se tornou uma referência para me lembrar que por trás deles tem uma vontade genuína e humana de fazer parte de um todo.
É tão bom pertencer, afinal.
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Na filosofia oriental se usa o termo “ilusão da separatividade”, algo intrínseco à nossa vida encarnada, que diz respeito ao fato de percebermos as coisas como separadas da gente, eu cá, os outros lá, apesar de, na teia da vida, estarmos invariavelmente interconectados. E o anseio por sentir essa conexão habita a essência da nossa natureza de seres sociais: querer ser aceito-amado-acolhido-compreendido é uma necessidade universal.
Por isso, um dos caminhos que o budismo aponta é que a gente consiga olhar para além da cultura, dos preconceitos, das máscaras e de toda essa ideia de estarmos cada um no seu quadrado é praticarmos a reativação do nosso senso de comunidade, olharmos para a nossa humanidade em comum e nos entender, em algum lugar, como uma coisa só.
Porque pertencimento faz aflorar bondade, generosidade, justiça e tudo isso que queremos para uma sociedade sã, enquanto o isolamento nos encerra em nossas caraminholas e nos torna mais vulneráveis a medo, incerteza e desesperança (e mais propensos a ser cooptados por uma seita maluca).
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Ailton Krenak (se ele começasse uma seita, eu ia) nos lembra que o ideário de vida moderna, urbana, capitalista, individualista, cartesiana, desritualizada e desencantada nos faz sentir mais despertencentes do que nunca.
Em várias falas ele explica como, desde a revolução industrial, a humanidade tem se “divorciado” da ideia de que é parte da natureza, o que, além de permitir o desastre ambiental em curso, causa uma eterna sensação de isolamento.
Ao não nos relacionarmos de forma intencional e afetuosa com o organismo vivo do qual somos parte, perdemos a experiência primordial de pertencimento.
“A liberdade de se conectar com a natureza nos faz perceber que também somos parte dela. De se entender como uma extensão de tudo, de ter essa experiência do sujeito coletivo. De sentir a vida nos outros seres, na árvore, na montanha, no pássaro. A terra constitui a primeira camada, o útero da experiência da consciência.”
Ailton Krenak
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A história do patinho feio é contada de forma mais complexa em Mulheres que correm com os lobos, mas sege aquele script do pato que não se encontra na família onde nasce e vive em agonia por ser diferente dos outros, que não o compreendem e caçoam dele, vários traumas aí, até que ele se coloca em uma jornada de autoexílio e descobre que, na verdade, é um cisne, e não um pato, e finalmente se reúne com os seus e fica em paz.
No livro, a autora explica que, quando não nos sentimos pertencentes a um ambiente, família, cultura, etc, perdemos nossa força vital, temos nossa capacidade criativa congelada e entristecemos progressivamente.
E a gente dá muita cabeçada nessa busca por pertencimento, o famoso “procurar nossa turma”, o que pode envolver criar relações de codependência ou tentar se apertar onde não cabemos, fingindo ser outra coisa, oprimindo nossa autenticidade mais uma vez. Mas, segundo ela, se houver persistência, confiança, paciência e ação, vamos descobrindo nosso caminho, nossas pessoas, nossos espaços, onde podemos experimentar sustentação para florescer.
“Um aspecto importante da história do patinho feito é o de que, quando a vibração específica da alma de um indivíduo é cercada de aceitação e reconhecimento psíquico, a pessoa sente a vida e a força como nunca sentiu antes. Descobrir a sua verdadeira família psíquica proporciona ao indivíduo a vitalidade e a sensação de pertencer a um todo.” Clarissa Pinkola Estés
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Uma hora eu explico melhor, mas recentemente passei um tempo entre um grupo novo do qual eu queria muito fazer parte, e eu precisei dedicar um tempo a conhecer as pessoas e me fazer conhecer.
Incrível como isso me despertou pensamentos infantis, será que vão gostar de mim, será que vão me chamar pra festinha, será que sou legal mesmo ou tem algo de errado comigo EU SABIA que tinha. Mas hoje eu tenho mais recursos para deixar que a voz da insegurança me afete (um pouco) menos, ainda bem.
Voltando ao budismo, eu li também sobre como pertencimento é algo que precisa ser encontrado dentro da gente, e não ficar só à mercê das circunstâncias exteriores.
Pertencimento, antes de tudo, pode ter a ver com se perdoar, se aceitar, estar ok consigo, e essa firmeza interna nos faz não depender (tanto) dos outros para nos sentir pertencentes.
Quanto mais entendemos da onde viemos e conseguimos ficar confortáveis na própria pele, mais se abre espaço para pertencer a nós mesmos. Tem um empoderamento que vem pelo autopertencimento: o fortalecimento da completude interna é diretamente proporcional à sensação de fazer parte.
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Quando penso em pertencimento, percebo que pra mim é uma sensação flutuante e fragmentada: tem lugares em que algumas partes parecem pertencer, mas outras não, ou não mais, e eu gostaria de passar mais tempo onde mais partes são contempladas.
Porque, quando isso acontece, quando estou em uma situação que atende as minhas necessidades do momento, encaixada entre pessoas que compartilham afinidades, entre insatisfações, desejos, alegrias e agonias, sinto a paz de não precisar me explicar.
Dito isso, me parece que a busca por pertencimento tem algo de infinito. Funciona mais como um direcionamento, que mantemos no horizonte mas que não é necessariamente alcançado ou totalmente suprido, ou talvez seja, mas só às vezes, em alguns momentos.
E aí me ajuda, como uma prática, me considerar no macro, me entender como humanidade, como natureza, como cosmos.
Por essa ótica, estar viva já é suficiente para pertencer.
Pertencimento pelas palavras da sábia Lúcia Helena Galvão.
Um dos meus “comforts movies” (perdão pelo anglicismo) é Lady Bird (2017) (tem na Amazon Prime), da Greta Gerwig, que lembra um pouco essa busca por pertencimento na adolescência.
Minha leitura do mês foi Memória de Ninguém, de Helena Machado, um mergulho psicológico como eu bem gosto. Intenso, aborda temas pesados, lindamente escrito, dá vontade de grifar três frases por parágrafo.
Gosto dos conselhos criativos dessa moça.
Emocionada com os registros de golfinhos e baleias no litoral brasileiro.
Não resisti e comprei ingresso para os dois dias do festival Uma Doce Maravilha, no Rio.
Por hoje é só pessoal,
Chorei com a parte em que você relata sobre o seu esforço de pertencer a um novo grupo. Venho passando exatamente por isso (nova cidade, vontade de descobrir nova carreira, etc) e me vi demais nesse frio da barriga. Vou levar seu texto e todas essas visões sobre pertencimento pra minha terapia, pode apostar ❤️
Amei esse texto Betina 🧡.