Uma história que minha mãe conta com frequência da infância dela é que meu tio e meu avô costumavam sair para caçar rãs no brejo e daí voltavam com um saco lotado com as bichinhas, jogavam na pia e iam tirar a lama do corpo enquanto minha avó passava o resto do dia entre cortar a cabeça remover as patas a pele as tripas passar em água corrente e organizar em uma bacia para depois empanar e fritar e servir o almoço para depois lavar a louça e o chão respingado do processo e ela ficava puta da vida quando já estava terminando e minha mãe trazia mais um pratinho, meu avô já roncando na rede, meu tio já brincando de outra coisa.
Minha mãe nunca pareceu sentir prazer em cozinhar. Ela não diz, mas pra mim fica claro que associa a cozinha a um ambiente opressor que deixa as mulheres exaustas e sozinhas resignadas à pia sempre suja e ela já fica cansada o suficiente do trabalho fora de casa. Quando eu era criança, era comum que ela recorresse a soluções rápidas e indolores (aceitáveis nutricionalmente na época), como nuggets congelado e “risoto” (arroz de ontem com restos de geladeira e queijo ralado, no forno); em dias de festa, sobremesa de Bis com brigadeiro e sorvete de creme Kibon.
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Na minha vez, tive a oportunidade de ressignificar a relação com a cozinha. Até isso acontecer, porém, foi um longo período de estranhamento, ainda mais enquanto tinha almoço garantido no refeitório da empresa (faz tempo). Apesar de adorar comer, tratava cozinhar com o pragmatismo desencantado da minha mãe; comprava ali uma abobrinha, um arroz, tacava na panela, comia rápido para não notar a insipidez, ficava com vergonha quando precisava cozinhar em grupo em algum lugar e me esquivava para o pré (picar, misturar) e o pós (a louça, sempre ela).
Pensando agora, acho que foi só na primeiro ano da pandemia, talvez pelo tempo esgarçado desse período tão moroso, que realmente tomei como objetivo dissolver esse bode geracional.
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Minha tia irmã do meu pai, que, diferentemente da minha mãe, sempre ocupou a cozinha com propriedade, recentemente me disse que só passou a gostar de cozinhar mesmo quando começou a ver o programa da Rita Lobo, lá por 2013, minhas primas já adultas e ela isenta da obrigação de servir almoço e janta, almoço e janta, as conquistas dos tempos fazendo com que as tarefas domésticas fossem melhor divididas (meu tio agora limpa banheiro e passa aspirador). Aquela mulher linda bem vestida juntando ingredientes em panelas chiques e coloridas, tudo tão prático, tão agradável: cozinhar podia ser um deleite, afinal, ao invés de um fardo.
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Depois que parei de comer carne, precisei entender melhor a composição das refeições e dosar as proteínas, além de adquirir um pequeno inventário de temperos e pesquisar preparos criativos para não cair no enjoo do refogado básico. Saber cozinhar, principalmente sendo home officer freela sem VR, significa independência, economia e controle de qualidade do que boto pra dentro. Não chega a ser um hobby, mas consigo curtir. Gosto da sensação de me relacionar com o que sustenta meu corpo de forma mais direta.
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Esses dias eu estava lendo A terra dá, a terra quer, do Nêgo Bispo, pensador quilombola, e ele conta como, na arquitetura quilombola, a cozinha é o espaço mais amplo da casa, um lugar de recepção. Apesar das mulheres prevalecerem, elas nunca estão sozinhas ali: quem chega traz a roça, corta uma abóbora, faz a salada, sem elas terem que pedir nada, elas “iniciam a feitura e as pessoas vão tomando conta enquanto jogam conversa fora”.
“Cozinhar só é cansativo quando alguém cozinha sozinho para servir a todos. Num clima de festa, cozinhar não é cansativo. (…) Quando fazemos a arquitetura, pensamos na comida e na festa, nas formas compartilhadas de vida”.
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Ainda hoje, os homens 60+ com quem convivo na família não fazem parte da organização da refeição e não se levantam imediatamente da mesa para lidar com os desdobramentos – pegar a sobremesa, fazer o café, ajeitar a cozinha. Às vezes, quando eu viajo com amigos 30+, acontece o mesmo.
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Meu feed atual do Instagram foi algoritmicamente moldado em uma sequência infinita de tutoriais de comida de perfis receitas_veganas_simples imaginavegan laricavegana itsvegansis e variações desses nomes e penso que é claro que é muito mais fácil cozinhar com esse boom de canais na internet e imagina como era quando tinha que ter um caderninho para anotar as receitas que vinham nos rótulos e que passavam na TV.
Mas me incomoda que a agilidade de um reels disfarce o trampo que é cozinhar, ainda mais na realidade urbana-cada-um-no-seu-quadrado. Eu obviamente sei que não dá para fazer uma torta toda em 1min30seg, mas no vídeo bem produzido fica parecendo tudo tão prático, tão agradável.
Pelo menos revezo com meu companheiro: cada dia um prepara o almoço e o outro lida com a cozinha. Enquanto houver vida, haverá louça pra lavar, a gente canta junto em uma melodia inventada.
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Ultimamente eu e minha mãe temos nos divertido (e nos enojado) compartilhando uns vídeos inacreditáveis de gente fazendo massa com molho de salgadinho Cheetos derretido, purê de batata com Pringles amassada e bolo com cobertura de biscoito Oreo batido no liquidificador.
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Minha avó ruminava dores particulares mas também carregava as aflições de tantas outras mulheres de tantas outras gerações. Minha avó detestava ser relegada à cozinha mas adorava cozinhar, não duvido, pelo menos para as netas: na casa dela não tinha isso de faltar ingrediente, ela criava com o que encontrava na geladeira e gostava de fartura, fazia macarrão cabelo de anjo com muito queijo bolinho de chuva bem oleoso e uns sanduíches de três andares e duas camadas de recheio para eu levar para o cursinho.
O último abraço que eu dei na minha avó foi depois de um almoço, há 13 anos. Ela estava suada por baixo da malha de lã, de touquinha no cabelo; tinha preparado um moussaka, aquele prato de origem grega que é tipo uma lasanha com carne moída, berinjela e purê de batata, não lembro o que teve de sobremesa, não havia muito tempo porque eu tinha que correr para o estágio, mas consigo recobrar o gosto do moussaka, a canela que temperava a carne, e a cena dela sentada à mesa, sorrindo, tudo tão aromático, tão amoroso. A memória das rãs estrebuchando não tinha vez ali.
A newsletter da Carla Soares, OutraCozinha, investiga o que o comer revela sobre nós.
Gosto muito dessa matéria que escrevi sobre o porquê da obsessão com Nutella e Leite Ninho na doçaria.
“Então você começa a refogar cebolas: de uma hora pra outra, desaparece o burburinho ensurdecedor das demandas e só se ouve o crepitar dos cubinhos translúcidos no azeite.”
Li essa crônica do Antonio Prata há um tempão e ficou na cabeça.
Esse episódio do podcast Prato Cheio, do sempre excelente O Joio e O Trigo, fala de marcas e redes tipo Oxxo tomando as cidades.
A proliferação dos serviços de entrega de cestas orgânicas de pequenos produtores me dá muita alegria. Um dos melhores que testei em SP foi o Da Roça: manda um zap para que eles enviam o cardápio da semana, supercompleto, incluindo com pães, ovos, cogumelos.
Adoro a Ritinha militando contra os ultraprocessados.
Entrei na onda da Glucose Goddess e tenho achado que as dicas dela realmente funcionam pra ter mais energia e menos fissura por açúcar.
Sabedorias de uma monja cozinheira nesse episódio de Chef’s Table.
Pedi para o Chat GPT “um cardápio vegetariano de almoço e jantar de segunda a sexta prático e fácil com ingredientes brasileiros acessíveis” e gostei do resultado.
Um doc de 13 minutos pra entender o impacto do consumo de carne no desmatamento do Cerrado e na vida de animais silvestres e em confinamento.
Sextou com bolinho da Fioca, minha confeitaria preferida em SP, que não usa Nutella, nem Leite Ninho.
até mais,
Amo cozinhar e produzo conteúdo, mas tenho aflição de ver reels! O Ig vive colocando no meu feed e eu evito ao máximo, apesar de não resistir a um ou outro. Parece que como tudo, incluindo a produção de conteúdo, a cozinha tmb caminha pra esse lugar de rapidez e eficiência. Fora que você entra no loop e o tempo que vc teria para fazer outras coisas e, eventualmente, cozinhar, vai poro saco. Dia desses saiu uma matéria na Folha falando sobre como a cozinha afetiva está sobrevivendo aos realitys e tiktoks da vida. Cozinha de resistência, nesse caso, ganhou um outro significado.
Compartilho contigo da agonia da facilidade insípida que os vídeos de reels com receita inspiram. Mas é por isso também as pessoas mais os colecionam do que usam para cozinhar. Eles tem uma pegada com ares de entretenimento, feito para passar um minuto e sonhar com uma comida "de chef" tanto quanto qualquer reality show de cozinha, e não tanto pra construir uma relação, que só acontece como você sua avó ou sua mãe, para o bem e para o mal, acabaram vivendo: ela acontece fazendo. Beijo enorme!