Esses dias, durante um voo pra Floripa, dei com o livro da Tamara Klink no Kindle. Eu já a seguia nas redes e acompanhei, ano passado, quando ela chegou ao Brasil depois de atravessar o Atlântico em um veleiro, sozinha.
Mil Milhas (2021) conta sobre sua primeira viagem solo, com 23 anos, da Noruega para a França, no mesmo barco, chamado Sardinha, que ela usou para vir até Recife.
Os capítulos são baseados no diário de bordo e contam sobre o caminho que ela percorreu até encontrar o barco, ajeitar o barco e viajar efetivamente; os percalços, angústias e satisfações até a chegada e um pouco do que rolou depois da volta para casa.
Ela também compartilha o processo de “se acostumar à ideia de acreditar em si mesma”, a ambivalência que sentiu em relação a “criar conteúdo” (“confundo-me entre viver e registrar o que estou vivendo”) e suas inquietações sobre se tornar adulta e se desemaranhar dos pais (uma coisa meio ~coming of age).
“ando saltando entre portos e peitos
ando deixando meu rastro pra trás
feito jabuti eu me carrego dentro
da casca apertada transbordam meus membros
por todos os espaços
e os tempos
até minha casca não me conter mais.”
Me surpreendi com o fato de ela não ser tão experiente quanto eu pensava quando se dispôs e encarar o Mar do Norte (ainda que assim, com 14 anos ela tava dando um rolê em família na Antártica) e de o pai dela, o navegador Amyr Klink, não parecer um cara muito camarada ou motivador (ela diz que ele até já a acusou de estar “se aproveitando do nome dele”, tipo, what?).
Achei uma leitura gostosa, porque que loucura guiar um barco sozinha em alto-mar, entre tempestades e equipamentos que quebram e ventos que não sopram a favor.
Além disso, metáforas náuticas funcionam bem para outros processos da vida, e ela traz boas reflexões sobre a ousadia dos começos, sobre (nunca) estar pronta, sobre a coragem de visitar os medos e seguir os próprios predicados.
Me lembrou algo dos meus 20 e pouquinhos, essa vontade de crescer e partir.
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O livro também me fez pensar no poder dos deslocamentos, algo que eu estava sentindo ali mesmo, em uma viagem de avião curtinha para um lugar que eu já conhecia, e mesmo assim estava lá, meu velho conhecido deleite por mudar de paisagem.
Eu passei (ainda passo) bastante tempo falando sobre viagem para imprensa & empresas, viajei um bocado, já tive um blog e uma curta ocupação de “influencer” (na época dizia-se ~blogueira).
Tive a privilegiada oportunidade de passar por tantos lugares e sou grata.
Mas fui criando muitos questionamentos e incômodos, principalmente por causa do funcionamento do turismo enquanto indústria (a culpa é do capitalismo).
Do lixo em Caraíva, da especulação imobiliária em Alter do Chão, dos recifes de corais destruídos na Tailândia, da miséria nas Maldivas.
(pra jogar um dado, segundo a Organização Mundial do Turismo, só 5% do gasto de um turista estrangeiro em um país em desenvolvimento fica com a população local).
Das experiências empacotadas, forjadas e superficiais, da disseminação de entretenimento pasteurizado, fissurado em likes e grana.
Um impacto ambiental e social tremendo mascarado por imagens inocentes de céu azul, espreguiçadeiras e mar.
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Claro que a viagem da Tamara pelo mar corre longe disso, e por isso mesmo ela me remeteu ao tesão que eu tenho por viajar.
Me lembrou o que eu sinto ao me espalhar por outras superfícies, me lambuzar de coisas belas e inéditas, lanches & passeios; conhecer outras gentes, alegrias e problemas, apreender no outro que me é estranho e o que me é conhecido.
Lembrei do potencial transformador de se botar no mundo, que já vivi na pele e através de relatos como o dela.
Teve um momento em que eu comprei uma motinho capenga e percorri estradas enevoadas em montanhas na fronteira do Vietnã com a China (sério).
Hoje sinto que nem preciso ir tão longe ou ser tão aventureira para alimentar essas partes minhas que ficam subnutridas quando passo um tempo estática.
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Na busca por aplacar meu bode supracitado e encontrar outras referências de como viajar, descobri, por exemplo, o Coletivo Muda, que reúne empresas tentando construir um turismo mais responsável, a Vivalá, uma agência de expedições pelo Brasil focadas em turismo de organização comunitária, o livro da Luísa Ferreira, Guia de viagens pra dentro e pra fora: como viajar de forma transformadora e responsável, esse A a Z do viajar (um pouco mais) sustentável.
Também tenho seguido outros tipos de viajantes, tipo esse casal que está visitando todos os 74 parques nacionais do Brasil e essa família canadense cujos filhos têm uma doença que acarreta a perda da visão e que viajou por um ano para que eles criassem memórias do mundo.
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Terminando esse texto, descobri que a Tamara lança em julho um novo livro, este sobre a viagem da Europa ao Brasil.
Louca pra ler.
Vulcões: A Tragédia de Katia e Maurice Krafft (disponível na Disney+), um documentário sobre um casal de franceses unido por uma inexplicável tara por estudar vulcões, com imagens chocantes de crateras, magma e fumaça.
Nevoeiro: tenho curtido acompanhar a newsletter da escritora Carol Bensimon, que mora no mato no norte da Califórnia (queria).
Radio Novelo Apresenta: virei fã. Que podcast bom. Meus três preferidos: Maria e Café, Caixas Pretas e a primeira história de Terra de Ninguém (não tem ordem para ouvir e os episódios são atemporais).
A ascensão da arte indígena na Piauí, que li depois de ver a incrível exposição dos artistas huni kuin sobre mirações da ayahuasca (até 4/6 no Masp).
Relatos de pessoas que sobreviveram à reanimação cardiopulmonar depois de uma parada cardíaca: onde a ciência toca o espírito?
Metade das vendas de água engarrafada cobriria acesso universal à água potável. Parar de consumir água engarrafada também reduziria efetivamente a poluição plástica; se estima que 85% das garrafas acabam em aterros sanitários.
Aliás, finalmente descobri uma garrafa que vem com um filtro, o que permite tomar água da torneira de qualquer lugar. Ironia: é de plástico.
Pantufas fofíssimas de produção familiar para o inverno sudestino que está por vir.
até mais,
Betina