Livraria de aeroporto é aquilo: se você fuçar bem até encontra alguma coisa, mas a organização das estantes, feita sob o único critério do que está vendendo e do que eles acham que vai vender mais, acho eu, dificulta a busca. Me impressiona o quão genérico é o agrupamento do que é chamado de autoajuda: meditações de Marco Aurélio, livro da Monja Cohen, A Sutil Arte de Ligar o Foda-se e dicas do Primo Rico para ter uma “mente de milionário” estão ali, tudo junto e misturado. Lembrei de um tempo em que eu me dispunha a ser uma espécie de sommelier de autoajuda, tentava separar o joio do trigo, filtrar toda essa bobajada de coach e cultuadores de CEOs, entender onde havia alguma sabedoria e o que era só mais um na infinita esteira de publicações dessa indústria importada dos EUA. Com o tempo, dei uma cansada, até porque a maioria é bastante prolixa e mal escrita, mas no saguão de embarque, me permito ser fisgada por algum título prometendo riqueza, sucesso, paz e as respostas para os mistérios da existência. Pego na mão Essencialismo: A disciplinada busca por menos, folheio duas páginas e decido viver sem ele.
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Aliás, até quando vamos sustentar esse maldito pacto de tolerância com os títulos caça-clique que estão infiltrados em absolutamente todos os meios? No Youtube então, eu tenho a impressão de que está todo mundo gritando 5 ERROS FATAIS COM DINHEIRO, ISSO ESTÁ ACABANDO COM A SUA SAÚDE, COMO O LIVRO ESSENCIALISMO PODE TRANSFORMAR SUA VIDA.
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Frequento o Rio desde criança para ver a família e nutro uma relação ambígua com a cidade (tem como não ser assim?). A Zona Sul é um cenário artificial e capenga que ainda tenta corresponder plasticamente à ideia que os turistas fazem da Cidade Maravilhosa, enquanto 90% da população, bem longe do mar, está afogada em descaso e desigualdade. O que salva é o gingado, o rir para não chorar, o verde dos morros.
A recepcionista do hospital em Benfica me alerta para não ficar na rua depois que escurece. Subo até o terceiro andar, o prédio está limpo, mas parece anacrônico. O quarto tem móveis antigos entre paredes cor de céu e rodapés com azulejos azuis-escuros. Se escondessem os celulares, me botassem um permanente no cabelo e tirassem uma foto, ninguém duvidaria de que é 1982. Minha avó, que sofre de uma série de moléstias em decorrência da idade e do Alzheimer, está de cama há quase dois meses. A falta de movimento faz o corpo padecer rapidamente: é preciso injetar anticoagulantes para conter o risco de trombose, fazer curativos em escaras que se abrem pela pressão contínua em determinadas regiões e tomar diurético para eliminar o líquido que se acumula nos braços, pernas e pés. É terrível encarar a data de validade da estadia terrestre de quem a gente ama.
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Vou visitar minha prima. O filho dela, de 4 anos, me conta que viu um jacaré no Bosque da Barra naquele dia. Estava debaixo d’água, só com os olhinhos para fora. Parece que uns 4 mil jacarés-de-papo-amarelo, espécie ameaçada de extinção, resistem no complexo lacunar de Jacarepaguá (que foi chamado assim justamente pela presença dos bichos), adaptados à poluição pesada e às contradições do Rio. Às vezes, eles surpreendem o piquenique de alguém. Teve um que foi visto no terminal rodoviário da Alvorada. Estes remanescentes dos dinossauros passaram por catástrofes globais com extinções em massa e continuam por aqui. Quem sabe vão sobreviver à próxima.
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Outro dia dei com esse post aqui que, se você não quiser ler, recomendo que role a tela só para ver as imagens. Um publicitário fez um compiladão de argumentos que mostram que, nas últimas décadas, houve uma enorme homogeneização visual nas cidades contemporâneas, das paisagens urbanas à decoração de interiores, passando pelos cartazes de filmes, design dos carros, rótulos de produtos e até pelo ROSTO das celebridades. As capas de livro de autoajuda também estão lá (teve uma “trend” recente de colocar “fuck” nos títulos). O publicitário não propõe grandes conclusões filosóficas e termina dizendo que, já que vivemos nessa mesmice, precisamos ser criativos e pensar fora da caixa, blábláblá. Eu fico achando que isso tem a ver com a necessidade do sistema de produzir coisas em larga escala e garantir que sejam vendáveis; daí a repetição do que já deu certo. E também com a globalização e os modismos exaustivamente replicados.
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Volto para casa em um voo noturno, uma pena, porque a chegada à ilha é linda. O cara do meu lado, um carioca migrado para Santa Catarina, proclama: pô, o Rio é maravilhoso, maix Floripa é mó paix. Os anúncios no desembarque figuram predinhos pasteurizados recém-construídos (“a vida é muito curta para não morar na praia”) e clínicas de harmonização facial.
Na manhã seguinte, levo minha cã para passear em uma trilha ao redor da Lagoa da Chica, um local muito agradável com gramado, deque, parquinho, bancos e um espelho d’água coberto de ninfeias. Descobri recentemente que a lagoa passou por um processo de revitalização, concluído em 2016; antes, era um depósito de lixo e esgoto. A coisa saiu do papel graças a uma mobilização dos moradores, e a lagoa de fato virou (ou voltou a ser) uma área de lazer, frequentada por gente, uma porção de pássaros, eventuais capivaras e, vejam vocês, o jacaré-de-papo-amarelo. Uma placa avisa que o bicho pode aparecer e pede para ter alguma cautela. Toda vez torço para avistar algum, mas até a última sexta, quando eu terminei esse texto, nada.
EIS QUE ontem de tarde fui lá de novo e vi um pessoal aglomerado em um canto apontando pra algo. Era ele! O Chico, disseram que chama. Não sei se vive sozinho ou se tem companheiros. Estava paradão, gordo e tranquilo como o jacaré da Pampulha, curtindo uma nesga de sol. Infelizmente não levei o celular para registrar o momento, mas voltei aqui para esse adendo.
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Possivelmente não era a melhor hora para eu ver o filme Meu Pai, (na Netflix) ou era exatamente o momento certo. Anthony Hopkins brilhante e a dor de envelhecer e esquecer.
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É difícil recomendar Elefantes na Neblina,1) porque geralmente não gosto de podcast de conversinha; 2) porque os caras não se preocupam muito em explicar nada, só saem falando. Mas sempre pesco umas pérolas.
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Nunca assinei esses clubes que mandam um livro por mês, mas o Amora, só de autoras mulheres, me animou.
Rapidinhas
Suspiro final
Estou obcecada com o Lajedo de Pai Mateus, de repente eu preciso ir à Paraíba para pisar no Lajedo de Pai Mateus, cem bolotas gigantes de pedra, pinturas rupestres que mostram que nosso país é muito antigo, que lugar. Mas eu queria mesmo é ver esse pessoal aqui tocando no Lajedo de Pai Mateus.
#publi
Me mandaram o teclado Wake Keys, da Logitech, e curti a ondulação das teclas. A almofadinha vem a calhar para quem digita o dia todo. É bluetooth, sem fio. Foi um bom upgrade do meu teclado antigo, que também era dessa marca.
Até mais,
Que delícia de crônica, Betina!
Sobre essa dualidade do Rio, recomendo o livro Ninguém quis ver, da poeta Bruna Mitrano. É um retrato cru da vida na periferia, no Rio que não é cartão postal.