praia 🏖️
devaneios no litoral, oração para desaparecer, iemanjá, desodorante de pedra e mais
Uma vez li que toda ida à praia passa de alguma forma por uma tentativa de ponte com alguma inacessível praia da infância.
Nesse janeiro de 2024, em que cultivei dias deliberadamente preguiçosos, me recuperando de um fim de ano pauleira, vieram vários vislumbres daqueles longos verões, as famigeradas Férias de Janeiro, que para a maioria dos adultos são uma entidade reservada somente para a primeira fase da vida.
Era uma rotina arranjada ao redor de permanecer o maior tempo possível na areia: guarda-sol, baldinho, raquete de frescobol, sacola com banana e cream cracker enfiados no porta-malas do Santana cinza, a sinuosidade da Rio-Santos, uma entrada cativa para pegar aquela vaga debaixo do chapéu-de-sol. Montávamos acampamento perto do morro direito e da barraca da Edi, que abastecia de pastel, e dos carrinhos da Rochinha, que abasteciam de picolé de groselha, que manchava a camiseta vestida a contragosto para proteger os ombros tostados. Eram gerações de familiares disputando um lugar à sombra, se alternando entre cochilos e lanchinhos e mergulhos, meu pai levava a gente para caçar tatuís, pegar onda com prancha de isopor, olhar os peixinhos que bicavam o musgo das pedras. O dia corria até o lusco-fusco, quando alguém tomava a iniciativa, é hora de ir, forrar os bancos do Santana, dirigir de volta, descarregar a tralha, preparar um almojanta, desmontar o corpo curtido de sal e sol nas redes da varanda e sentir o bafo da noite caindo. Por vezes tinha uma ida à feirinha do centro, tererê no cabelo, brinco de missanga, show de graça na praça, sorvete por quilo. Um ritmo que era alterado apenas pela inclemência das chuvas na Serra do Mar, que impunham momentos de tédio preenchidos por horas de TV aberta e jogos de tabuleiro.
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Entrevistei recentemente um artista que pinta cenários costeiros e ele disse que gosta da mescla de experiências que se pode ter na praia, lugar onde o hedonismo, o banal e o superficial convivem com uma carga profunda, reflexiva. Tendo passado mais tempo no litoral nos últimos anos (e agora finalmente me mudado para o litoral), pude presenciar essa faceta mais introspectiva, digamos, da praia, para além da estridência do alto verão, principalmente durante caminhadas longas, de manhã cedo ou no fim da tarde, de biquíni ou moletom. Pude observar a interação dinâmica entre os elementos e as variações de luz, de forma e de cor a depender da hora, do dia, do mês; o fluxo das marés, a força dos ventos, a movimentação das nuvens, a lua, os raios e arco-íris, que ficam evidentes em um espaço tão escancaradamente aberto ao céu.
No livrinho de ensaios A vida descalço, o escritor argentino Alan Pauls fala de praias como um lugar de nudez: não só pelo motivo óbvio de “a praia ser o único espaço público onde a nudez quase completa não é uma exceção nem uma infração provocadora, e sim um princípio de existência, uma forma de vida, a lei que rege a convivência humana”, mas porque a praia, como um deserto, é um espaço nu, de despojamento radical, que remete a um mundo primitivo.
A própria areia está repleta de resíduos ancestrais, da decomposição de rochas ao longo de milhares de anos.
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Esses dias dei com essa matéria sobre a “invenção” da praia como lazer no Ocidente e parece que, até o século 18, praias eram vistas como inóspitas e perigosas, lugar de naufrágios, dilúvios, piratas e monstros, o litoral como uma margem simbólica para o desconhecido do além-mar, palco de batalhas e aventuras. Daí, com o crescimento da sociedade urbana e industrial europeia, as elites começaram a buscar praias para revigorar o corpitcho e respirar ar puro, coisa que foi alimentada pelos pintores e escritores românticos, que poetizavam a natureza e o mar, e aí foi se formando essa ideia de praia como escape da cidade e da correria da vida moderna. Foram os ingleses que conceberam o conceito de resort de praia e de turismo de massa, que foram se expandindo pela Europa, e já no século 19 os visitantes alteravam a dinâmica de cidadezinhas costeiras que viravam destinos da moda.
Essa ideia, como atesta o Alan Pauls, popularizou a praia como um não-lugar, uma tela em branco, uma abstração fora do tempo: algo que sempre esteve lá e sempre estará, para o nosso deleite, e que não tem relação direta com nada ao redor. E esse fetiche pelas praias foi tendo uma série de efeitos também negativos, como uma especulação imobiliária horrorosa em regiões costeiras, sempre chutando os mais pobres para mais longe da areia, com ocupação desordenada e destruição de ecossistemas vulneráveis (essa matéria da Piauí traz um panorama muito bom da complexidade da ocupação do litoral brasileiro a partir do caso do condomínio de luxo na Ilha de Boipeba, na Bahia).
Hoje, grande parte das praias do planeta está diminuindo pela erosão marítima causada principalmente pela ação do ser humaninho, e aí tem gente tirando areia do fundo do mar com dragas enormes para despejar nas praias e aumentar a área. Nesse episódio do podcast Café da Manhã, da Folha, um levantamento mostra que nos últimos seis anos foram seis Maracanãs de areia despejados em 24 intervenções desse tipo no Brasil. A mais conhecida foi feita em 2021 em Balneário Camboriú (SC), essa cidade com síndrome de megalomania onde os prédios à la Dubai da praia central fazem sombra na areia depois das 14h.
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Me contorço toda diante das estátuas da liberdade da Havan e dos outdoors que anunciam mais um arranha-céu em Balneário Camboriú na estrada até atravessar a ponte e rumar ao sul da ilha, uma ilha dentro da ilha onde fica Florianópolis. O senhorzinho que faz pão na rua de trás usa boné do MST, a proporção de restaurantes veganos por habitante impressiona. A associação de moradores local barrou um conjunto comercial esse verão por ter sido construído em área de restinga; Marquito, deputado estadual pelo PSOL que fala de paz, amor e agroecologia, é uma celeb do bairro. As construtoras estão chegando em cheio nessa região, porém, que tem ganhado prédios baixinhos e casas-caixote onde até pouco tempo era tudo mato.
Peço licença para as dunas que ainda se agigantam lindamente por quilômetros de orla. Para chegar na praia perto de casa, há pequenas trilhas entre a restinga, que forma uma mata bem farta em alguns trechos. Em um deles, há uma lagoa de água doce onde dá para tomar banho antes de seguir para o mar. Caminho pela faixa de areia, praticamente vazia fora do horário de pico, enquanto encaro as contradições da minha mudança para a ilha e prometo habitá-la da melhor forma que eu puder.
Ruminei minha saída de São Paulo por anos e não tinha considerado ir além das bordas do estado, até que os ventos (minha irmã, na verdade) me trouxeram pra cá. Foi uma das poucas coisas na minha listinha de prospecções para 2023, um ano que me deixou bastante desconcertada algumas vezes, que se concretizou, nos 45 do segundo tempo.
Começo 2024 na praia, no embalo dessas memórias de criança, enquanto ensaio um novo ciclo aqui. Os desejos para o ano por enquanto pairam ao redor de me assentar, seguir tentando entender meu lugarzinho nesse mundão e passar o máximo de tempo possível escancaradamente a céu aberto.
Bom ano pra vocês!
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É simples. Se amem. Plantem árvores.
Di Melo (no meu último show de 2023)
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Pirando nas paisagens anoitecidas da artista Daniela Paoliello.
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Acabei de terminar Oração para Desaparecer, da Socorro Acioli, por indicação da
. Era o que estava precisando: uma história bonita cheia de sonhos e rezos e mistérios que prende do começo ao fim.💻
Dia de Iemanjá: por que você precisa conhecer mais sobre essa orixá, na Gama.
📺
Aftersun, um filme de praia melancólico, como a vida sempre pode ser.
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Tô muito hipster esse verão ouvindo Sessa, Bruno Berle e Matheus de Bezerra.
✈️
Desejo para 2024: fazer uma expedição de trilha com a Montanero, que descobri em um trampo de mapeamento de turismo no ano passado. Eles criam roteiros bem diferentões pelo Brasil, vale dar uma fuçada no site.
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Compras de início de ano:
O desodorante de pedra, que funciona melhor do que todos os naturais que eu já tentei.
Um papa-bolinhas, que salvou uma porção de roupas que eu tinha dado como perdidas.
Uma agenda da Todavia, bem lindona e prática. Nunca me convencerei com google calendar e sei lá mais o quê.
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Muito bom esse episódio sobre sono do podcast Meu Inconsciente Coletivo. Nunca tinha pensado em dormir como um ato de entrega, de confiança.
📱
Gosto de descobrir novos jeitos de registrar a passagem do tempo e lembrar do que são feitos os dias. Com o aplicativo 1 Second Everyday, dá pra criar um diário com vídeos de 1 segundo. Depois, ele combina todos num videozão de retrospectiva.
🍳
Sunomono: o melhor jeito de comer pepino.
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Em 2005, duas irmãs australianas começaram a fazer recifes de corais de crochê para levantar a discussão de como esses seres são ameaçados pelas mudanças climáticas. De lá pra cá, 25 mil pessoas já colaboraram e rolam exposições itinerantes.
Querida!
Já tinha decidido encaminhar a sua newsletter para algumas pessoas queridas por conta da linda reflexão acerca da praia, ai ainda fui presenteada com uma menção.
Muito obrigada 🤍