Olá, essa é uma newsletter quinzenal escrita por mim, Betina. Se você é novo por aqui, seja muito bem-vindo. Se gostar dessa edição, te convido a compartilhar com alguém.
Minha avó morre e ninguém sabe o que fazer. O hospital indica que se contrate o serviço de uma assessoria funerária, um atendimento semi-robótico fala sobre documentos e transporte e passa opções de planos de velório, com ou sem rosas colombianas, com ou sem violinista. Minha avó nunca mencionou o que queria desse dia, esse é o problema de não pensar sobre a morte, não falar sobre a morte, a morte como esse tema proibido, aflitivo, obsceno (eu vou deixar tudo escritinho pra minha hora, decido).
Chegamos no Crematório da Penitência, Rio de Janeiro, uma manhã de início de outono, nublada, ar pesado. No corredor há uma sequência de salas com outros velórios concomitantes, de modo que as vozes e choros se confundem e tem mementos em que ninguém sabe que morto é de quem. Minha avó está na última delas, solitária entre paredes inertes, quase tudo branco não fossem as cadeiras pretas e duas coroas de flores grandes ao redor. Quem vai chegando distribui alguns abraços e se reúne em pequenos grupos de conversa que vagueiam o assunto para longe dali. Uma senhora, conhecida do prédio, chega com o marido, solta um “nem vou perto do caixão que não gosto dessas coisas” e fica lá fora. O resto se senta e fica no celular. Olho a hora, não vai demorar para virem buscá-la. Escolheram o velório mais curto.
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Rituais são ações simbólicas que transmitem e representam todos os valores e ordenamentos que portam uma comunidade. Rituais estabilizam a vida e transformam o estar-no-mundo em um estar-em-casa. Fazem do mundo um local confiável. São no tempo o que uma habitação é no espaço. Fazem o tempo se tornar habitável. Ordenam o tempo e mobilizam-no.
O simbólico como meio da comunidade tem desaparecido a olhos vistos. A dessimbolização e a desrritualização condicionam uma a outra.
Ao tempo falta hoje a estrutura firme. Ele não é uma casa, mas um fluxo volúvel. Desintegra-se em uma mera sucessão de presentes pontuais. Se esvai.
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Um incômodo cresce. Por que ninguém trouxe umas coisinhas dela pra gente enfeitar essa sala insossa? Umas fotos, um exemplar da coleção de corujas, aquele santo que ficava na cabeceira? Por que não fizemos uma espécie de altar de memórias? Ninguém planejou um discurso, uma homenagem qualquer? Por que não montaram, sei lá, uma mesa de lanches? Minha avó jamais receberia esse pessoal sem comida. Logo ela, sempre tão caprichosa, em um evento despreparado desses. O violinista da sala do lado está dando um show, logo se arrependem de não terem contratado o pacote premium. A porta está aberta e um falatório de fora e de dentro ecoa pela sala – por que ninguém está prestando atenção?
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A percepção simbólica desaparece hoje cada vez mais em prol da percepção serial, incapaz da experiência da duração.
O regime neoliberal acelera a percepção serial, aumenta o hábito serial. Elimina deliberadamente a duração para obter mais consumo. O update constante que compreende nesse ínterim todos os âmbitos da vida não permite a duração ou o término. A vida se torna, com isso, mais contingente, mais efêmera, e instável.
A atenção é a reza natural da alma. Hoje, a alma não reza. Ela se produz continuamente.
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Fecho a porta, convoco as pessoas a silenciarem e leio uns parágrafos que eu escrevi sobre minha avó às pressas, no avião. Minha prima puxa uma oração, pai nosso e tal, o background católico ajuda. Minha mãe bota o volume do celular no máximo e dá play numa Ave Maria do Roberto Carlos. Um cara lá de trás que eu não reconheço diz que é cantor, se adianta e puxa o coro com um vozeirão: “Cubra-me com seu manto de amor/Guarda-me na paz desse olhar...”.
Minha irmã cata alguns dos buquês trazidos e entrega pra mim e outras mulheres: em um gesto comunicado com o olhar, começamos a separar as flores dos talos e colocar sobre o corpo da minha avó, da cabeça aos pés, crisântemos, gérberas e astromélias emoldurando o rosto e os cabelinhos ralos da Anamélia, “Nossa Senhora, me dê a mãããão”. Vamos espalhando as pétalas coloridas, preenchendo os espacinhos, minha avó em uma cama de flores, ela que foi sempre tão caprichosa, ela que cuidou da vida como um jardim. Lembramos umas cantigas que ela gostava, um trava-língua, uma musiquinha que ela cantava pra gente dormir, alguém recorda um causo engraçado recente com ela, todos riem entre lágrimas, desaguando ali aquelas memórias, forjando um ritual, antes que pessoal do crematório viesse e levasse minha avó para longe, de vez. Não foi o suficiente, mas foi o que deu.
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Rituais e cerimônias são ações genuinamente humanas que fazem a vida festiva e encantada. Seu desaparecimento profana a vida em sobrevivência.
A cerimônia do luto, por exemplo, se sobrepõe como um verniz protetor sobre a pele e a isola contra as queimaduras cruéis face à morte da pessoa amada. Onde cessam de existir rituais na condição de dispositivos de proteção, a vida está desprotegida por completo.
Dados e informações não possuem força simbólica. No vazio simbólico, todas as imagens e metáforas que provocam sentido e comunidade e que estabilizam a vida têm se perdido.
A percepção atual é incapaz de conclusão ou inferência, pois se apressa de uma sensação a outra. Apenas a permanência contemplativa é capaz de concluir. Fechar os olhos é um emblema da conclusão contemplativa. As imagens e informações que se aglomeram hoje fazem com que seja impossível fechar os olhos.
Os trechos acima foram recortados com alguma liberdade do livro O desaparecimento dos rituais: Uma topologia do presente, de Byung-Chul Han.
Em memória de Anamélia Adrien das Neves (1938-2024)
Quando eu estava pensando sobre rituais depois dessa experiência no velório da minha avó, dei com a matéria Nós precisamos de rituais e não rotinas (em inglês), que inclusive cita o livro do Byung-Chul Han, e discute essa ideia já até meio batida da necessidade de cultivar rituais diários para fazer o tempo se tornar mais habitável, e porque não, sagrado, e resistir à lógica de produção e consumo e ao ritmo volúvel da vida que passa pelas telas. Mas não fala muito, porém, sobre como regenerar os rituais coletivos e se proteger do vazio simbólico atual. Engraçado que um velório deveria ser um ritual, mas parece que, como tantos outros, foi esvaziado, capitalizado, acelerado, desencantado. Uma amiga me contou que a avó dela morreu em uma cidade pequena do interior e que o velório foi em casa, os vizinhos passando o dia todo para ver o corpo, bater uma prosa, tomar um café, um velório humanizado, eu diria. A perda dos rituais também pode estar ligada à vida excessivamente urbanizada e encaixotada.
Achei legal à beça o projeto Rios e Ruas, que conheci em um episódio da Radio Novelo e tem tudo a ver com a ideia de “ficar com o problema”, da qual falei da news passada. São Paulo tem mais de 300 rios enterrados sob o concreto, mais de 3 mil quilômetros de cursos d’água. O projeto traz visibilidade para essa aguaceira toda, promove iniciativas de proteção e mobilização e conversas sobre a relação entre as pessoas, as cidades e a natureza.
Aliás, na nova temporada do podcast do Joio e o Trigo tem um bom episódio com a terrível história da água engarrafada.
Filmes sensíveis e contemplativos com montanhas como cenários (estão na Amazon Prime ou aqueles canais que ficam lá dentro): 1) As Oito Montanhas, história bonita de amizade que se passa em uma cidadezinha remota nos Alpes Italianos. 2) A Felicidade das Pequenas Coisas, no qual um carinha da cidade vai ser professor em um vilarejo mais remoto ainda nos Himalaias, no Butão. Ambos alimentaram minha fantasia de um dia correr para as montanhas.
Há um tempo eu sigo o casal de fotógrafos Irmina Walczak e Sávio Freire, ela polonesa e ele brasileiro, que vivem nômades com os filhos há seis anos e registram a vida íntima e familiar. Uma lindeza.
até mais,
Tão importantes os rituais... E quanto mais íntimos mais fortes, né? Lindo texto.
Obrigada por compartilhar. No velório da minha mãe, que precisou ser de caixão fechado, levamos uma foto pra "ilustrar", um aparelho portátil e diversos CDs (tem 20 anos!) para ouvirmos. No cortejo, coloquei Frank Sinatra, e a primeira música foi The Lady is a Tramp. No meio da dor, soltamos boas gargalhadas... velório humanizado... amei.