Quando eu fiz 30 anos, nos longínquos tempos pré-pandemia, minhas amigas me mandaram um cartão que dizia “parabéns, jovem senhora” junto de uma cesta de agrados contendo linhas para crochê, granola, biscoitos, meias de lã, um aromatizador de ambientes, um livro e não me lembro bem mais o quê.
A mensagem e o teor dos presentes não foram (só) uma ~zoeira com esse emblemático romper de década que transporta da vivência semijuvenil dos 20 para algo um pouco mais, digamos, encorpado, mas uma alusão real aos meus interesses e atitudes.
Porque eu tenho apreço por coisas como estética de casa de vó, artesanato e dormir cedo. E desde criança percebo essa persona que me habita, que na terapia eu já chamei de dona neves, velhinha que vive de bico, tem o olho preso ao defeito e assiste à vida com certo cansaço: que trabalho que dá levantar da cama, tatear o rumo, esbarrar pelos cantos, lidar com os sustos, encarar esse mundo problemático e ainda fazer o que precisa ser feito, ela pensa, enquanto prepara mais um chá.
Quando dona neves está em um dia especialmente ruim, me invade um desesperinho, uma sensação de que a vida dói mesmo e precisa assumida em suas contradições e agonias até a última gota, até que a gente desague para longe daqui.
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Em uma das minhas experiências com ayahuasca, eu senti que realmente tinha me tornado essa velha; aliás, era um velho, corcunda, de gorrinho, cabeça baixa, as mãos voltadas pra dentro, boca caída. O velho se lembrava de um monte de coisa triste, um leque de cenas de sofrimento sobrepostas, e ele chorava, chorava, chorava, mas depois se levantava pra dançar em volta do fogo, entre vultos de outros velhos (não tenho mais explicações, estava sob o efeito do chá), a velharada tá aqui, ele me dizia, a vida é uma festa, minha filha, e ele balançava as pernas cansadas e sorria, o que é triste a gente chora, minha filha, e depois passa.
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Como essa velha que me acompanha se comporta de maneira birrenta e taciturna, eu fico desejando outra simbólica, a da anciã sábia dos arquétipos de Jung e de tantos mitos; Héstia, a deusa grega do fogo interno do lar, da experiência interior e subjetiva; Nanã Buruquê, entidade ligada ao princípio e ao fim de tudo, detentora dos saberes, das curas.
E aí eu me imagino assim, lá em 2070 e poucos, com o temperamento moderado pela experiência, já desprendida das armadilhas da pressa, das minicertezas do ego, do sufoco das convenções, já tendo feito o grosso do que podia, liberada para me voltar para a contemplação da vida, como um esporte, como um deleite, distribuindo conselhos, inventando poções, conversando com as lagartixas, repousando em mim mesma, fazendo o que me der na telha, com mais tesão na alma do que no corpo, como disse Rita Lee.
“Aos 73 anos, tenho meus cabelos brancos. Já fui loira, já fui ruiva – que era um Sol na cabeça – e, agora, tenho a Lua comigo. Sinto também um vetor da vida que transforma o desejo. Já transei para caramba e, agora, tenho mais tesão na alma”. Rita Lee
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Eu entendo que
faço parte de um sistema moedor de corpos que capitaliza os jovens e rejeita os velhos, muitas vezes fazendo com que eles se sintam inúteis e invisíveis;
existe todo um jogo cruel em cima das mulheres pelo valor atribuído historicamente à nossa juventude e aparência;
com a idade, o corpo de fato impõe limitações, alguns processos biológicos caducam e cobram o preço dos excessos e das faltas;
ser velho não é absolutamente sinônimo de ser sábio; tem gente que parte daqui pior do que veio e muitos idosos (talvez pelo isolamento?) se revelam um compêndio de intransigência, preconceitos e amargor.
E ainda assim
eu anseio pela serenidade dessa fase da vida, como se exclusivamente lá pudesse haver alguma paz, uma liberdade que se ganha com a idade, como diz a antropóloga Mirian Goldenberg.
Eu amo ouvir a lucidez e o conhecimento acumulado sob a pele de Annie Ernaux, Jane Goodall, Silvia Federici, Bethânia, Dona Francisquinha Shawãdawa.
Porque tem coisa que só vem com tempo, com o amadurecimento. É só fazer o simples exercício de se imaginar dez anos mais novo e perceber quanto auê desnecessário que havia.
Então eu simulo uma conversa com essa versão minha grisalha e enrugada, eu despejando minhas inquietações de hoje e ela me dizendo: que isso, minha filha, te acalma. A vida é uma festa.
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Quando eu tava escrevendo esse texto me veio de reler, coisa que quase nunca faço, ler um livro mais de um vez, Sobre os ossos dos mortos, da Olga Tokarczuk. É uma história maravilhosa, uma trama meio thriller com uma protagonista velha excêntrica que ama os bichos, estuda astrologia e mora em uma casa no alto de uma montanha gelada. O fim é bom demais.
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Fiquei impactada com Incompatível com a Vida (no Mubi), documentário autobiográfico da diretora Eliza Capai que discute o direito ao aborto a partir da perspectiva de mulheres que descobrem uma má formação no feto durante a gravidez. Fortíssimo.
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Que lindeza o trabalho da artista pernambucana Gio Simões. Fiquei querendo ir num desses retiros que ela organiza que misturam tarô, colagem e afins.
🖵
Em uma tentativa de não corroer minha atenção, tenho parado uma vez por dia para ler uma matéria mais longa sem interrupções. Gostei dessa investigação sobre porque a Finlândia é considerada o país mais feliz do mundo em uns rankings aí (em inglês). No fim, não parece que o povo de lá tem essa percepção, afinal frio do diabo, dias escuros e um mood meio bleh, mas reconhecem o bem-estar social derivados de coisas tipo bolsas do governo para pessoas serem artistas sem precisar passar perrengue.
Rapidinhas
Os textos da newsletter da
são muito aconchegantes.Uma playlist gostosinha pra deixar assim rolando nesse pós-carnaval.
Como fazer as coisas durarem mais na geladeira (com dicas fazíveis).
Chinelas lindas de uma marca 100% carbono neutro.
Uma rádio de sons da natureza em vários lugares do mundo.
Ecosia, um Google que planta árvores com nossos cliques (parece que planta mesmo).
1h de podcast pra entender a treta de bairros de Maceió afundando.
Suspiro final
De O Livro dos Abraços, Eduardo Galeano
Até mais,
Minha criança interior também é acompanhada de uma senhora que só quer viver em paz. Cansei de escondê-la para "me adequar" ou "pertencer". Só quero viver.