Olá, essa é uma newsletter quinzenal escrita por mim, Betina. Se você é novo por aqui, seja muito bem-vindo. Se gostar dessa edição, te convido a compartilhar com alguém.
Muitas vezes me perco na tendência de querer encontrar soluções. Me dá aqui uma esteira de problemas que vou fazer uma lista de ideias para resolvê-los, um a um. Se forem problemas dos outros então, mais gostoso ainda, quase um hobby. Não importa se é crise existencial, dor nas costas ou vazamento de pia.
O guilty pleasure dessa minha persona é assistir a programas de TV de extreme make over, tipo Queer Eye. Chegam aqueles cinco moçoilos tão simpáticos na casa de alguém, pegam tudo o que está desequilibrado e, em uma semana, ou pelo menos assim fazem parecer, talvez seja ainda menos tempo, plim: cabelo lindo, casa reformada, pulsão de vida renovada. Desligo a TV e vou dormir em paz. Está tudo resolvido.
Somos filhos de um sistema baseado em comercializar soluções como produtos (“seus problemas acabaram!”). Está nos manuais de empreendedorismo, nos livros de autoajuda e nas falas dos coaches de marketing digital, promessas de soluções para todo tipo de pepino, adversidade, moléstia, desgosto e perturbação.
Me parece muito perigoso se apegar a qualquer narrativa que creia a vida como solucionável e apresente soluções com um tom definitivo: toma aqui esse remedinho e prometo que você não vai mais se sentir triste. Uma cultura que nega a elaboração complexa dos problemas, sem querer encará-los com atenção e, mais importante, tempo.
(Minha pragmática mãe, quando digo que acabei de sair de uma sessão de terapia, vem cheia de graça com uma pergunta que já virou bordão: “e aí, resolveu tudo hoje?”).
Se a impermanência é a natureza da vida e se somos naturalmente imperfeitos, toda solução tem prazo de validade e é parcial. Apesar disso, muitas vezes só valorizamos soluções que se propõem a resolver 100% da questão. Se não, melhor nem tentar. E aí caímos na paralisia porque perdemos as nuances.
Quando, na verdade, qualquer movimento em direção a algo um milímetro mais harmonioso, digamos, é louvável e desejável; um passinho pra lá e a coisa melhora 10%, produz um outro efeito, faz brotar uma sensação nova.
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Ninguém mostra os personagens dos realities seis meses depois do make over porque isso provavelmente causaria frustração. Putz, olha ele ali, com os mesmos desafiozinhos. De qualquer forma, fantasio que a pessoa sempre tire algo interessante da experiência, nem que seja um pouco de diversão e a possibilidade de renovar momentaneamente a narrativa sobre si.
Pensar assim me parece mais válido para lidar com os problemas reincidentes, porque a vida se desdobra assim, em espiral, e não em linha reta; em caos, e não em ordem; e parar de projetar a paz para quando os problemas cessarem; dia que, sabemos muito bem, não chega, talvez só com a morte, mas tenho minhas dúvidas. Aliás, ninguém consegue resolver a morte, ainda que tentem, das maneiras mais esdrúxulas.
A experiência em carne e osso é pra ser vivida, e não resolvida.
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Tudo isso me veio a partir da leitura de Ficar com o problema: fazer parentes no Chthluceno.
A autora, Donna Haraway, é uma pensadora americana 70+ com uma produção acadêmica vastíssima que passa por biologia, literatura, estudos de gênero e um bocado de outros temas. Nos últimos 20 anos, ela se tornou uma voz importante para pensar a cilada climática e as múltiplas crises em que estamos metidos.
Haraway defende que precisamos resistir a ideia de tentar “resolver” os problemas que ameaçam a vida no planeta, cuja proporção imensa acaba nos deixando em um estado de dormência aflitiva.
Sua proposta é “ficar com o problema”, uma alternativa ao cinismo e o desespero do “não tem o que fazer, está tudo perdido” e o otimismo ingênuo de um futuro que vai ser salvo, seja por deus ou pela tecnologia. É preciso olhar na cara do monstro e sustentar o que se vê para abrir outros caminhos.
“Nós – todos os seres da Terra – vivemos em tempos perturbadores; tempos confusos, turvos e desconcertantes” (...) “Ficar com o problema requer aprender a estar verdadeiramente presente; não como um eixo que se desvanece entre passados terríveis e entre futuros apocalípticos ou salvadores – mas como bichos mortais entrelaçados em uma miríade de configurações inacabadas de lugares, tempos, matérias, significados.”
Nessa entrevista, ela diz:
“Não há solução, é preciso permanecer no problema. Assim é o jogo da vida na Terra. A ideia de que existe uma solução, uma forma de sair do problema por um salto, é teológica, muito cristã. Encontre a solução no céu. A ideia de que problemas e os desfrutes da vida têm uma solução é horrível. E se olharmos para os dilemas urgentes em que estamos, pensar que podemos resolvê-los traz uma imagem equivocada. Uns com os outros, temos que encontrar maneiras de curar em parte, inventar coisas novas, reduzir os danos, construir e reconstruir para avançar, não para solucionar.”
Para ela, é preciso renovar o pensamento sobre a urgência do que vivemos para conseguir encarar o hoje e, consequentemente, o amanhã. No livro, ela fala de iniciativas e parcerias inusitadas (entre humanos e animais, artistas e cientistas), gente que está “ficando” com determinados problemas e agindo de maneiras criativas para conceber outras narrativas sobre as possibilidades de vida conjunta no planeta.
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“Solução” vem da palavra latina solutio, que carrega o sentido de decompor, dissolver. Então, no fim das contas, solucionar não precisa encerrar o assunto, mas pode diluir, dividir, desmontar.
A partir dessa ideia, pensei em outras ações para além de “resolver um problema” que dão mais abertura, mais respiro. Sempre pensando em mexer com pequenas parcelas de um problema; o problema como fases de um jogo, e não como um chefão. Se variarmos as formas de entender os problemas, sejam eles quais forem, talvez surjam ideias de movimentos mais frutíferos.
aceitar o problema
respirar com o problema
observar o problema
provocar o problema
afrontar o problema
aguentar o problema
se afastar do problema
desviar do problema
ponderar o problema
trabalhar o problema
manobrar o problema
desfiar o problema
deglutir o problema
cuidar do problema
distribuir o problema
deslocar o problema
reduzir o problema
relativizar o problema
desatar o problema
melhorar o problema
desmanchar o problema
romper o problema
(...)
se me fiz entender com essa pira e se você tem alguma outra palavra para ficar com problemas, deixe aqui nos comentários que vou adorar saber.
▶️ Esse singelo videozinho Como ajudar um amigo em luto fala exatamente sobre conseguir oferecer companhia para a dor do outro, sem querer resolver (em inglês).
"A alma humana não quer ser aconselhada, consertada ou salva pelo outro. Ela só quer ser reconhecida, vista, ouvida e aceita exatamente como é.” Parker Palmer
📰 Me divirto demais com as crônicas da Luciana Andrade, pena que ela não tem escrito mais.
📰 Um perfil da médica Ana Claudia Quintana Arantes, que trabalha pelo direito de morrer melhor.
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🎧 Interessante o podcast Reinventando a Natureza – esse episódio discute a popularização do procedimento de congelamento de óvulos.
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🎶 Quem aguenta Milton Nascimento & esperanza spalding?
🎫Já não está fácil conseguir lugar pra ficar no centrinho de Paraty para a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) de 2024, que vai rolar entre 9 e 13 de outubro. E ainda nem saiu a programação completa.
Até mais,
Obrigada! essa news foi um chacoalhão potente que me levou a muitas reflexões. Compartilharei com certza.