No minidocumentário Como cuidar de um bebê elefante (na Netflix), que ganhou o Oscar esse ano, um casal do povo kattunayakan, do sul da Índia, recebe a tarefa de cuidar de um bebê elefante que ficou órfão. Entre tantos, me chamou atenção um trecho em que dizem:
“Meu povo vem do coração da floresta. Vivemos da floresta e a protegemos. Andamos descalços dentro dela. É nossa maneira de mostrar respeito.”
E aí eles aparecem se embrenhando por uma trilha, catando fruta do pé e até fazendo uma espécie de rapel com cipós numa pedrona. Descalços.
Lembrei que em muitas culturas asiáticas tem toda uma etiqueta em relação a tirar os sapatos em determinados ambientes. Isso tem razões práticas e higiênicas, pelo fato de que em muitos lugares do continente sentar, comer e dormir são feitos no chão ou muito próximo dele. E também culturais-religiosas: na Tailândia, por exemplo, me disseram que a cabeça é a casa do espírito (logo, sagrada), enquanto os pés são a parte menos nobre do corpo (justamente por sua distância do espírito), e sapatos são vistos como portadores de impurezas. Não se entra em casas e templos calçado e nem se coloca os pés em cima das coisas – tomei dois pitos em momentos de distração quando estava lá, um porque apoiei os pés nas costas do banco do ônibus e outro porque sentei em com os pés ligeiramente direcionados à estátua do Buda.
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Claramente não tenho TOC de limpeza mas já há um tempo nutro uma repulsa por sapatos em ambientes internos, principalmente no banheiro. Depois da pandemia solidifiquei o hábito de nunca entrar de sapato em casa e inclusive pedir para família e amigos que vêm visitar fazerem o mesmo.
Penso menos em bactérias, vírus, coliformes fecais e mais na preservação do espaço que habito diante das influências externas, como se os sapatos arrastassem para dentro poeiras, pesares e pressas que não são meus. Fora o conforto: assim como muitas senhorinhas tailandesas, deixo uma pantufa na porta para colocar assim que passo pela porta. Uma coisa meio ufa, cheguei. Aqui é seguro pisar macio.
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No Japão e nos EUA existe desde os anos 1980 uma gama de pesquisas que procura evidenciar o que aconteceu com a gente ao se distanciar do nosso habitat natural e como se reconectar com áreas verdes afeta nossa saúde integral. Mais recentemente, alguns estudos vêm sugerindo que ficar descalço na terra, areia, grama, pedra pode ter efeitos no corpo, porque a sutil carga elétrica que vem do planeta pode atuar de forma antioxidante e anti-inflamatória, ajudando a reduzir dores e atenuar o estresse, além de regular o sistema nervoso e o relógio biológico.
A ideia por trás da prática de “aterramento” é que os seres humanos evoluíram por milhares de anos em contato direto a Terra e que, com a urbanização e o uso constante de calçados de sola sintética, perderam os benefícios vindos dessa conexão.
Para as crianças, já é sabido que andar descalço em diferentes tipos de terreno ajuda a desenvolver a coordenação motora, melhorar o equilíbrio e fortificar os músculos dos pés e tornozelos.
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Fui criado numa casa de chão batido, onde andava descalço. As galinhas e os outros animais conviviam conosco dentro de casa. Quando uma galinha estercava na casa de chão batido, a parte úmida do esterco era absorvida pela terra. Tirávamos a parte sólida e jogávamos no quintal para servir de adubo. Para o povo da cidade, isso é um horror. Pisar as fezes de galinha? Impossível! Tem que ter uma cerâmica bem lisinha para poder enxergar qualquer outra vida, qualquer outro vivente que estiver ali, para poder desinfetar e matar qualquer microrganismo. Matar até o que não se vê. Para andar descalço, é preciso desinfetar o chão: a cerâmica foi criada porque os humanos não podem pisar a terra. Os calçados foram criados porque os humanos não podem pisar a terra. Porque a terra é o anseio original.
Nêgo Bispo, pensador quilombola, no livro A terra dá, a terra quer.
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Há um tempo eu venho tirando os sapatos ao ar livre na minha empreitada pessoal de reatar meu corpo com a natureza. Pensando bem, sempre convivi com o impulso hippie de ficar descalça na maior parte do tempo, tanto é que não gosto muito de usar tênis e priorizo chinelas e sandálias que sejam o mais fácil possível de tirar.
Além disso, no revés da cultura tailandesa, me parece um descaso hostilizar os pés, essas estruturas ossudas que nos carregam a vida toda, submetendo-os a desconfortos desnecessários (só uso salto – baixo – em festa de casamento e olhe lá) e relegando-os à indiferença. Não queria escrever a palavra autocuidado, mas é isso: tenho achado gostoso dar uma atençãozinha pra eles, os pés: passar um creme, fazer uma massagem, botar em água quente com umas ervas, pisar nessas bolinhas antiestresse.
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Você está onde seus pés estão. Não lembro onde ouvi, mas essa frase é pra mim um chamado para a presença muito eficaz.
Quando eu me perco em preocupações, elocubrações, autocobranças e aflições, encafifo com erros e arrependimentos, emburaco em conjecturas futuras, me deixo levar por links, abas e rolagens e sofro com todas as dores do mundo, eventualmente olho para baixo (por tomada de consciência espontânea ou porque, sei lá, dei uma topada na quina do móvel) e lembro: eu estou onde meus pés estão, aqui, neste momento, neste dia, e posso lidar com uma coisa de cada vez, com o que existe agora, no meu próprio passo. E isso é suficiente.
A nova sede do Museu do Pontal, no Rio, vale o deslocamento até a Barra da Tijuca: construção feita pelo pessoal de Inhotim e o maior acervo de arte popular do país. Belíssimo.
Gostei de fuçar na Aquarius, nova plataforma de streaming que tem docs e filmes de natureza, meditação, psicologia e afins.
Bonito esse episódio do podcast Escafandro sobre como ainda mantemos crianças sentadas em carteiras fechadas em salas por mais de uma década.
O fotógrafo francês Romain Veillon registra lugares com construções inabitadas que a natureza está tomando de volta.
Um site que faz um passeio didático pelos astros e distâncias inconcebíveis do universo (clica no “play” em “take a tour”).
Terminei recentemente um ótimo curso de literatura na Escrevedeira: “Narrar o eu: teorias e práticas da autoficção”. Eles tem uma sede na Vila Madalena, em SP, com café e muitos livros.
Desejo de viagem atual: conhecer a Reserva Ecológica Estadual da Juatinga, perto de Paraty.
Que delícia ouvir Xande canta Caetano em looping.
Para se informar diariamente, o compilado da newsletter Brasis é excelente.
Até a próxima,
Lendo a sua news lembrei de quando fui do DCE UFMG a nossa chapa chamava Pés no Chão porque "a cabeça pensa onde os pés pisam"
Adorei seu texto; ressoa muito para mim! Busco terra, árvore, mato para reconectar, silenciar, acalmar.