a mãe e a Flip 📖
deleites de Paraty, amor pelos livros, a vertigem de escrever, O Território e mais
Oi, essa é uma newsletter quinzenal escrita por mim, Betina. Se você é novo por aqui, seja muito bem-vindo. Se gostar dessa edição, te convido a compartilhar com alguém.






Decidi ir à Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) pela primeira vez, o que não é coerente com o fato de que eu nunca morei tão longe de Paraty. Mas é assim que são as coisas: foi nesse que ano que me mobilizei para ir à Flip. Tinha considerado viajar sozinha, fazer uma imersão literária introspectiva, não negociar as vontades com ninguém, mas eis que minha mãe, agora aposentada, demonstrou o interesse em ir comigo, disse que só fazia questão de estar nas mesas dos dois autores que falam francês, para testar se as aulas da língua estão rendendo. Beleza, pensei, até porque estou grávida e me pareceu uma oportunidade bonita de viagem intergeracional, ainda que em parte intrauterina, e de qualquer jeito o potencial boêmio da Flip não faria parte da minha experiência por motivos de cansaço, dor nas cadeiras e impossibilidade de tomar um unicozinho drinque Jorge Amado.
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Minha cambaleante trajetória pela Flip, subindo e descendo as pedras de Paraty (ai, minhas pernas), foi acompanhada principalmente por falas de autoras, algumas já conhecidas por mim e outras não, que contaram a partir do que escrevem, como sentem a fagulha, o ímpeto; o que as afeta, o que as incomoda, o que as entusiasma, e como isso é desaguado no texto; que tipo de disponibilidade precisam cultivar para que as palavras as tomem o corpo, como deixam as histórias e as ideias as conduzirem. Me pareceu unânime que, em alguns momentos, elas se sentem capturadas: escrever um livro envolve uma grande dose de assombro, de vertigem, tem algo que fala através delas, que precisa ser encaminhado no papel (“papel”), do qual não são totalmente donas. Há também, claro, esforço, organização, objetividade: “escrever um romance é mais difícil do que construir pontes, cheguei à conclusão conversando com um amigo engenheiro”, disse a escritora portuguesa Ana Margarida de Carvalho.
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Fui à Flip e me esbaldei, parti com aquela sensação agridoce de fim de festa, ficaria mais, queria mais. Comecei com FOMO e empreendi malabarismos para tentar encaixar o que eu queria no tempo que havia, o que me fez ingenuamente chegar em cima da hora da palestra da Socorro Acioli e só conseguir espiar o cucuruto dela pela janela e não passar nem perto de entrar na Igreja Matriz pra assistir o maestro João Carlos Martins; tomei chuva, passei calor, caí em poça d’água, peguei fila pra autógrafo, fiz parcelas na livraria, tomei café hypado no Montañita, participei de uma oficina de serigrafia, comprei artesanato dos guarani para o quarto da minha filha, almocei peixe local & pancs no delicioso Pupu’s Panc Party (gostava mais do salão antigo, mais simplão e com uma placa “não temos salmão”), vi tanto mesa da programação oficial quanto performance de rap na tenda das editoras independentes, ouvi a
, a e a falando sobre newsletters na casa Escreva, Garota! e, no sábado à noite, já mais esperta, cheguei mais de uma hora antes pra pegar lugar no auditório lá fora para ver o Mohamed Mbougar Sarr, seguido pelo Édouard Louis. Minha mãe entendeu tudo sem o foninho de tradução e voltou orgulhosíssima.***
Uma das mesas a que compareci foi com a escritora mexicana Jazmina Barrera, da qual eu tinha acabado de ler Linea Nigra, um trabalho autoficcional em que ela escreve sobre a gestação do filho (ela é casada com o escritor chileno Alejandro Zambra, que também falou sobre a paternidade). Ela contou que no processo de escrita se deu conta de que há poucos livros com histórias de parto, nascimento e amamentação; às vezes até estão lá, mas não recebem atenção, e que essas histórias não deveriam ser de interesse só de mulheres ou de mães, porque estão no âmago da origem da experiência humana, e que cada parto é em si uma história épica, com início, clímax, desenlace. Depois, disse que é verdade que de uns tempos para cá foram publicados muitos livros retratando as obscuridades da maternidade, com abandono, rejeição, depressão, e que isso também é bem-vindo, até para sair da narrativa muito conveniente aos homens durante tanto tempo de que a maternidade é a única realização plena da mulher, e passar a mostrar a ambivalência permanente dessa experiência. E que, de novo, todos podemos aproveitar essa reflexão sobre a ambivalência de estar vivo.
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Édouard Louis, tido como a estrela da Flip esse ano, publicou dois livros sobre a mãe, estou terminando o segundo agora. O rapaz só tem 32 anos e fez o maior sucesso na última década escrevendo sobre a própria história, marcada por pobreza, violência e rejeição à homossexualidade em uma cidadezinha no norte da França. Ele também escreveu sobre o irmão e o pai, sempre em livros curtinhos e ultrasinceros que têm essa intenção de manifesto político sobre questões de classe, mas à mãe dedicou dois livros, ambos sobre a emancipação dela de homens abusivos e dos papéis domésticos. Na mesa achei que faltou um diálogo com a América Latina, afinal ele estava aqui falando de pobreza europeia e de uma história que é tão comum a uma parte tão grande da população, mas foi interessante ouvi-lo, e ele ainda esbanjou simpatia por Paraty, tirou fotos com os fãs, tomou Jorge Amado na rua.
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No fim, parece que o saldo dessa Flip foi muito positivo. Falou-se de temas importantes, falou-se da brutalidade que há, mas também teve alegria e festa. A programação foi vasta e variada, não faltaram autores mais pop e acessíveis, o tempo colaborou e só choveu mesmo na quinta-feira. Foi gostoso observar a multiplicidade de experiências unidas pelo amor aos livros, às palavras, e de encontrar muitas perguntas e algumas respostas para a minha relação atual com os livros e as palavras, e sentir como isso me acompanha pelas fases da vida.
De rabo de olho, vi que as atrações da Flipinha, feita para as crianças, também estavam bem legais.
Estive em uma mesa com a Txai Suruí, ativista indígena que já fez um bocado de coisa importante, inclusive discursou na COP26. Ela falou de direitos indígenas, de crise climática, da equivocada ideia de progresso que ainda nutrimos. Foi mostrado um trecho do documentário O Território (no Disney+), que ela coproduziu com a National Geographic, sobre a luta dos indígenas uru-eu-wau-wau contra o desmatamento em Rondônia. É fortíssimo.
Engraçado que aleatoriamente dei com uma exposição do fotógrafo Luciano Candisani na Casa da Cultura de Paraty sobre as haenyeo, mulheres coreanas da Ilha de Jeju, algumas delas 90+, que fazem mergulho de apneia para catar frutos do mar. Poucos dias depois, vi que saiu o documentário As Últimas Mulheres do Mar (na Apple TV+), produzido pela Malala, também sobre elas, seu estilo de vida tradicional e seu ativismo contra a poluição do mar.
Saindo rapidamente da Flip, Pais e Filhos (no Mubi) foi um bom filme que vi recentemente, inspirado em uma onda de troca de bebês (!) que rolou no Japão nos anos 1960.
E voltando rapidamente à Flip, viajando pela Rio-Santos pensei que beleza aquela mata toda e quanta coisa ainda tem para conhecer por ali. Fazer a travessia da Ponta da Joatinga. Alugar uma casinha dessas e esquecer de tudo no Saco do Mamanguá.
Até mais,
Estávamos juntas no bate-papo de newsletters. Acho que foi por isso que cheguei aqui. 😉
Uma pergunta, Betina, a mesa da Jazmina Barrera era parte da programação principal? O livro que estou terminando fala da gestação do meu primeiro filho e fiquei interessada em ouvi-la.
Vi por acaso essa exposição das fotos das haenyeo na Casa de Cultura. Que coisa linda!