Há algum tempo venho tentando aparar excessos. Reduzir a bagagem, pisar mais leve. Recaio a atenção no meu guarda-roupa, algo com uma sombra de futilidade, mas que é necessário. Todo dia precisa se vestir, e aí, o que vai ser? Me assoberbam a abundância de peças desconjuntadas, muitas frutos de compras impulsivas. Malditas malhas de acrílico cheios de bolinha, malditas estampas que enjoam após o segundo uso.
Acabo num buraco de coelho sobre o que é chamado de armário-cápsula. A ideia é cultivar uma coleção de roupas concisa que se adapte ao seu ~estilo de vida e na qual predominem cores e modelos mais neutros que possam ser facilmente combinados entre si. Em parte, uma reação à cultura de compra rápida, para reduzir o consumo irrefletido e conseguir reunir peças das quais você realmente goste, que tenham mais qualidade e que se complementem melhor.
O pessoal do armário-cápsula se gaba com números: “consigo 60 looks com apenas 18 peças, acredita?”
Não pretendo ter um armário da Turma da Mônica ou do Steve Jobs. Acredito que deveria ter algum impulso criativo em se vestir. E o minimalismo excessivo me parece uma tentava ridícula de eliminar o caos da vida.
Mas me agrada muito a ideia de acordar e, com alguma agilidade, botar algo visualmente satisfatório em que eu me sinta confortável para movimentar meus membros, seja compatível com as condições climáticas e com os locais por onde vou transitar e com o qual eu me olhe no espelho e sinta que ok, isso tá bom enquanto casca.
Uma pesquisa realizada no Reino Unido apontou que lá as mulheres possuem, em média, 107 peças de roupa, mas, pelo menos uma vez por semana, dizem que não têm o que vestir.
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O passo a passo do armário-cápsula manda primeiro fazer um “decluttering”, ou um desentulhamento. Categorizar roupa de frio e de calor, avaliar o que realmente se usa em quais situações, um protocolo meio Marie Kondo. O ideal é escolher uma paleta reduzida de cores e se limitar a ela. Estampas devem ser selecionadas com muita parcimônia. Depois, é preciso identificar o que está faltando e comprar peças-coringa que ajudem a coordenar as composições (blusa branca, moletom cinza, calça jeans).
Entro em outro buraco de coelho. Pra fazer uma camiseta de algodão precisa de 2.720 litros de água. Em Bangladesh, os trabalhadores do fast-fashion ganham 380 reais por mês. Já viu aquele cemitério de roupas no Atacama? Podia parar de produzir roupa hoje e, se organizasse direitinho, ninguém ficaria pelado.
Por bem, parece que o mercado de brechós tem crescido muito. Sofreram um rebranding, viraram lojas lustrosas e sites com identidade visual e curadoria. Tem as startups do ramo, Repassa, Troc, Enjoei. Em 2020, o Troc foi comprado pelo grupo Arezzo e agora pertence a um fundo do investimento. O capetalismo vai nos salvar do capetalismo?
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Expulso do armário um morro de roupas. O que fica ocupa consideravelmente menos espaço. Já dá para ver alguma homogeneidade entre cores e tecidos, o que me traz paz de espírito. O manual manda não se livrar de uma vez, mas deixar longe do olhar e eventualmente voltar ao que foi tirado para pescar algo que talvez ainda possa ser aproveitado.
Não é exatamente fácil identificar os tais itens coringa, e de repente me vejo criando uma obsessão por encontrá-los. Assistir a vídeos com tutoriais de armário-capsula e fazer listas de garimpos no Enjoei captura meu tempo livre de forma insalubre.
Levo para a terapia: o que diz de mim tamanha dedicação a tal projeto? Seria para simular alguma sensação de controle em meio ao nevoeiro diário? Para dar uma dissociada e evitar encarar os vazios? Para encontrar nas roupas a identidade e o reconhecimento que me escapam? Ou esse comportamento compulsivo é só uma amostra de como os mecanismos online prontamente nos sugam para o que quer que seja?
Constato que, além de tudo isso, esse movimento tem a ver com a minha mudança de cidade, com o anseio por recomeçar literalmente com outra roupagem. E a busca por praticidade talvez seja uma tentativa de organização do eterno caos íntimo, de fazê-lo ganhar algum contorno.
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Na pandemia, ajudei algumas vezes num centro de triagem de doações onde tinha que abrir sacos de roupas desprezadas para categorizar por gênero e tamanho e tirar coisa rasgada, fedida, inutilizável.
Ainda que a doação seja uma destinação nobre para o que não se usa mais, a conta não fecha: fabrica-se muita roupa ruim & barata a um alto custo social e ambiental, consome-se demais, descarta-se demais. A vida útil das roupas é curta e, mesmo quando permanecem em bom estado para além do primeiro dono, existe um longo caminho para o que é doado chegar em quem precisa, e isso nem sempre acontece.
Lembro daquela pilha de roupas doadas que ficou apodrecendo após as chuvas em Petrópolis em 2022. No fim, foram incineradas. Para o Rio Grande do Sul, os Correios já pediram para dar um tempo nas roupas – peças de vestuário representam cerca de 70% dos donativos entregues em todo o Brasil.
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Vem uma sensação agradável ao botar minhas roupas para circular. Dou um trato nelas: costuro os furos, dissolvo as manchas, tiro as bolinhas. Distribuo entre amigas, levo num brechó do bairro, coloco uma ou outra pra vender na internet, doo para um bazar beneficente. Algumas padecem no canto do “não sei o que fazer com elas”.
O acervo mais enxuto já se mostra efetivo de algumas formas, mas percebo que o armário-cápsula exige tempo de construção e paciência e que não há um formato fixo e definitivo: ele será impermanente e imperfeito como a vida.
De qualquer jeito, a experiência está sendo válida de pensar o que visto de dentro para a fora, em como as roupas representam algum tipo de ponte com o que posso e quero expor.
Ps. Se alguém se interessou por essa temática, o vídeo dessa xovem gringa me ajudou, e essa moça oferece uma consultoria online.
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Fiz uma extravagância: comprei um livro no Kindle e gostei tanto que quis tê-lo também no papel. O título em português ficou ruim, mas Exploração é interessantíssimo. A escritora e jornalista peruana Gabriela Wiener escarafuncha o passado de um tataravô europeu que quase descobriu Machu Picchu no século 19 enquanto vive o luto pela morte do pai e constróis relações poliamor. Nesse percurso, fala de feridas coloniais, questões familiares, identidade, reconhecimento, autoestima, sexo e um tanto mais.
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O que tenho assistido: Dias Perfeitos (no Mubi), solenemente introspectivo, meditei junto com ele limpando privada na madruga. Um Dia (na Netflix), série gostosinha para os dias de outono (quase inverno!); excelente escolha de atores para o casal principal. Hannah Gadsby's Gender Agenda (na Netflix), especial de stand up só com pessoas queer.
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Consegui ver Cecília Vicuña na Pinacoteca na minha única visita à São Paulo do semestre. Vale muito a pena conhecer a obra da artista chilena, que só foi reconhecida no país há pouco tempo. Em Floripa, assisti Sagração, espetáculo de dança belíssimo da Deborah Colker, que está rodando o Brasil.
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Foi temporada de maçã em Santa Catarina e testei umas cinco refeitas diferentes de torta de maçã para quem quer ter pouquíssimo trabalho. Essa foi minha preferida.
Até mais,